Contos

Por facilidade de consulta, junto nesta página os contos para crianças  que coloquei no blogue. São uma pequeníssima parte do que tenho escrito, mas considero inviável colocar os textos mais longos, que são a maioria. Esses ficam à espera de um dia serem publicados em livro, juntando-se a “pirilampo e os Deveres da Escola”

Não incluo a origem das imagens. Clicando no título poderás ver o post original com esses dados. Da minha autoria são as dos contos “Cecília e Sissi” e “Mentiras do Vento”. “Uma história mal contada”, apesar de escrita em verso, vejo-a mais como um conto do que como um poema, por isso incluo-a aqui, com uma ilustração original de Rute Freire e Alexandre Freire.

Boas Leituras… e comenta!

Cecília e Sissi

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O quarto da Cecília está cheio de peluches por todo o lado: dois ursos, um gato branco, um tigre, um leopardo, dois pandas brancos e pretos, uma vaca, uma galinha colorida, um coelho castanho, um grande rato cinzento, uma boneca pequena de roupa e cabelos de lã vermelha, e outros mais.

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A menina gosta muito dos seus peluches e brinca muito com eles. Os tios e avós costumam dar-lhos quando ela faz anos ou pelo Natal. No dia em que soprou as quatro velas no seu bolo de aniversário, recebeu dois peluches novos – um leão e outro panda com um filhote.

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Aqueles peluches, que eram novidade lá em casa, foram ocupar os lugares do quarto de que todos os peluches gostavam mais: junto da caminha da menina. Os que antes ocupavam aquele lugar foram empurrados para mais longe. É preciso dizer que, longe da caminha da menina, os peluches ficavam com um ar mais triste. Todas as noites a Cecília escolhia um peluche para levar para o quentinho da sua cama e adormecia agarrada a ele. Nas primeiras noites calhou aos novos essa sorte mas depressa deixaram de ser novidade.

Quando a menina não estava no quarto havia grande agitação entre os peluches, todos procurando um lugar que atraísse a sua atenção quando voltasse.

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Muitas vezes, depois de vir do Jardim-de-infância, ia brincar com eles. Era uma alegria para os peluches. Mas havia uma boneca que parecia não partilhar de toda aquela alegria. Ficava no canto mais escondido do quarto, sozinha e triste, com um olho de vidro já sem brilho (o outro já faltava), os cabelos compridos de um lado e curtos do outro. O seu vestido tinha perdido a cor. Já há muitos meses que não era escolhida para dormir com a menina e nem sequer para partilhar as brincadeiras com os outros. Estava mesmo triste, no meio da agitação que havia no quarto.

De repente, fez-se muito silêncio. A menina acabava de chegar a casa e dirigia-se ao seu quarto. Trazia um avião de papel na mão e foi mostrá-lo aos peluches que estavam perto da sua camita. Depois explicou-lhes que aquilo voava. Achou que os peluches não acreditavam no que ela lhes dizia e atirou-o.

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Não voou muito bem e foi aterrar na cama, mesmo perto dela. Nenhum peluche se riu mas a menina percebeu que estavam cheios de vontade. Foi buscá-lo e atirou-o de novo.

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Desta vez o avião voou mesmo e foi aterrar no canto mais longe e ficou no colo da boneca. A Cecília correu a buscar o avião e, quando o agarrou, reparou na Sissi, a sua boneca grande, com aquele ar triste, de boneca abandonada. Pegou nela ao colo e esqueceu o avião.

Passado um pouco de tempo, sentou-a numa pequena cadeira de plástico e foi à cozinha buscar umas bolachas. Sentou-se na outra cadeira, ofereceu uma bolacha à Sissi e foi mordiscando as outras. Foi também buscar duas chávenas e um bule do seu conjunto de brincar e serviu um chá, recomendando à boneca para ela beber com cuidado e não se queimar.

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Depois do chá e das bolachas, estava a calçar as suas pantufas dos ursos, para ficar mais confortável, quando se lembrou de qualquer coisa. Levantou-se e pôs a boneca ao seu lado. Sorriu e disse: – Olha, anda ver.

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Com a boneca ao colo, correu até à sala onde havia uma fotografia das duas. A Sissi era, naquela fotografia, uma boneca muito linda, com um vestido cheio de cor, belos cabelos compridos, uns olhos brilhantes e, sobretudo, era mais alta do que a Cecília, que a abraçava com ar muito feliz.

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Brincaram juntas o resto da tarde.

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À hora do jantar, quando a mãe chamou, foram as duas. A mãe reparou nelas e disse:

– Nunca mais cosi o olho à boneca mas pode ser hoje.

Mal acabou de jantar e enquanto a Cecília continuava a comer – é preciso que se diga que a Cecília demora sempre muito tempo a comer – a mãe foi buscar o estojo de costura e lá encontrou o olho, que coseu no sítio de onde se soltara. A boneca ficava agora com melhor aspecto. A mãe virou-a para a Cecília e perguntou à filha:

– Ainda te lembras quando cortaste o cabelo à Sissi? Cortaste também o teu. Tive que te cortar todo o cabelo muito curto. Até te ficava bem… as avós é que ficaram muito tristes.

– Corta também à Sissi. – pediu a Cecília.

– Já que estou com a tesoura na mão, pode ser.

Depois do corte do cabelo, para ficar todo igual, e de mais alguns pequenos retoques, a boneca ficou engraçada.

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– Agora vamos lavar os dentes que são horas de ir para a caminha. – disse a mãe, e acrescentou: – Já estou a ver quem vai ser hoje a tua companhia.

Dentes lavados, a Cecília vestiu o pijama. Achou que a boneca também devia tirar aquela roupa para dormir e pediu à mãe uma roupa para a Sissi. A mãe foi buscar uma linda camisa interior com flores bordadas, que já não servia à menina mas que à boneca ficava um espanto.

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E a Cecília adormeceu, feliz, abraçada à Sissi que estava de novo com um ar alegre que tinha perdido há muito tempo. s14

A almofada desaparecida

A Cecília, ultimamente, andava com um hábito estranho: saía da cama pela manhã e trazia consigo a almofada.

Ia tomar o pequeno-almoço e levava atrás… a almofada.

Ia para a sala brincar e … isso mesmo, não ia sozinha.

A almofada era a sua companhia inseparável.

Estão a ver o problema? Não?

É claro que, nestas andanças, por vezes esquecia-se da almofada.

Geralmente ficava num lugar bem à vista de todos e a mãe acabava por levá-la para o quarto da Cecília ou mandava-a a ela ocupar-se dessa tarefa o que, claro, não era boa ideia porque lembrava a Cecília do quanto gostava de andar agarrada à almofada e a coisa recomeçava.

Nessa noite quando foi para a cama reparou que faltava a sua querida almofada. Começou por pedir ao pai que fosse buscá-la. O pai, cheio de paciência, lá foi procurar a dita almofada, mas nada… nem sinais dela. Procurou em todos os locais em que a Cecília costumava andar e não a encontrou.

Foi dizer à menina e ela ficou muito triste. O pai lá lhe explicou mais uma vez que o lugar da almofada é na cama e que devia lá ter estado todo o dia à espera. Como a menina teima em andar a passear a almofada pode acontecer uma coisa assim. Depois disse à Cecília, que não se conformava com a falta da almofada, que a fosse ela procurar.

É preciso que se diga que a Cecília, quando chega a hora de ir para a cama, inventa mil desculpas para ficar mais um bocadinho acordada e nesse dia não tinha sido excepção. Já não era nada cedo. Como ainda estava de férias e no dia seguinte não tinha hora marcada para se levantar, o pai não estava muito preocupado, mas sabia que depois de um dia tão animado a garota devia estar cansada.

A Cecília lá correu toda a casa à procura:

a sua almofada não estava em cima da cama dos pais,

nem debaixo da mesa da cozinha,

nem dentro da arca dos brinquedos,

nem estava atrás do seu cavalo de madeira,

nem perto da televisão…

Como não encontrou a sua querida almofada, lá se convenceu que tinha mesmo que ir dormir sem ela.

Pediu outra almofada ao pai e, quando ele lha levou, fez um ar de grande satisfação. Lá se deitou mas, ao contrário do que o pai previra, não havia jeito de adormecer. É que aquela almofada era muito diferente da outra… muito mais alta e ela gostava tanto da sua.

Mas o cansaço acabou por se impor e a menina adormeceu para uma longa noite de sono reparador.

A primeira coisa que a Cecília fez quando acordou foi voltar a procurar a sua almofadinha querida. Foi difícil, mas lá a encontrou. Na brincadeira, tinha caído para trás do sofá. Era um sítio escondido, inacessível, e isso explicava que na noite anterior não a tivesse visto.

Abraçou-a e deixou-se ficar assim durante um bocado.

Quando a mãe a chamou para tomar o pequeno-almoço, a Cecília foi ao seu quarto e poisou a sua almofada, muito direitinha, sobre a cama. É que se gostava de andar com a almofada durante o dia, ela fazia-lhe mesmo muita falta era à noite. Disse-lhe «até logo» e dirigiu‑se à cozinha.

A mãe perguntou-lhe se tinha achado a almofada.

– Achei. – disse a Cecília. – Estava na sala, atrás do sofá.

– Ainda bem. – disse a mãe, que perguntou a seguir:

– Então onde é que ela está agora?

– Está na minha cama… para não se perder.

– Olha, lá é que ela está bem. Parece que aprendeste uma lição…

E a mãe sorriu, com um ar enigmático.

As mentiras do vento

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A Cecília gosta muito de ouvir histórias. A toda a hora está a pedir ao pai ou à mãe que lhas contem.

Não se importa de ouvir as mesmas histórias vezes sem conta mas os pais é que protestam quando têm que ler a mesma outra e outra vez.

Naquele dia havia uma feira do livro na praça. O pai viu ali uma boa oportunidade de encontrar novas histórias e não ter que contar sempre as mesmas.

No fim da tarde, quando o calor já era mais suportável, foram passear até à feira do livro. Depois de uma tarde sufocante, levantara-se um pouco de vento.

Foi uma visita demorada… havia tanta coisa interessante para ver… tantos livros cheios de imagens bonitas ou de histórias que a Cecília tinha pena de ainda não saber ler mas que imaginava interessantes.

O pai comprou alguns livros dos muitos que folheou. Na banca ao lado havia livros abertos, a estimular a curiosidade das pessoas que passavam. A menina reparou que as páginas iam virando, como se alguém invisível estivesse a ler. Noutra banca, mais livros estavam a ser folheados. Que engraçado!

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À noite, depois do pai lhe contar uma história nova, a Cecília estava com dificuldades em adormecer. O calor era tanto que o pai deixara a janela aberta. As cortinas, que dançavam uma dança alegre, convidavam-na a juntar-se a elas. Levantou‑se da cama e foi até à janela.

Olhou a paisagem: muitas luzes distantes brilhavam no escuro. A Cecília teve dificuldade em perceber quais daquelas luzes eram estrelas e quais tinham outras origens. O vento, que entrava pela janela, brincava com o cabelo da menina. Baixinho, ao ouvido, contou‑lhe histórias de terras distantes que conhecera, de longas viagens que fizera, de ilhas tropicais por onde se demorara, de terras sequiosas a que levara nuvens com a chuva desejada, de outras gentes que visitara, de animais estranhos que afagara… Como a Cecília gostava daquelas histórias… ficou toda a noite a ouvir o que vento lhe sussurrava ao ouvido. Gostava delas mas… sabia que era tudo mentira. O vento conhecia tantas histórias porque tinha estado a folhear os livros que estavam nas bancas da feira e tinha lido todas aquelas histórias cheias de imaginação.

De manhã acordou, fresca que nem uma alface, e ficou sem conseguir distinguir aquilo que na realidade tinha acontecido do que fizera, apenas, parte dos seus sonhos.

Um susto de história com uma bruxa feia e um gato preto

A noite estava completamente escura mas não chovia… A temperatura até estava quente para a época, mas o gato preto estava enroscado perto do lume. Dormitava. De vez em quando abria um olho a controlar os movimentos da dona.

A fraca luz, na cozinha de paredes escurecidas pelo fumo, não deixava ver grande coisa, mas os gestos – à custa de tantas repetições – já quase podiam ser feitos de olhos fechados.

A velhinha, completamente vestida de negro, entoava a sua cantilena, enquanto mexia o conteúdo da panela enegrecida pelo fumo da lenha.

Estás a imaginar a cena, não estás? O que tu não imaginarias – nem ela, provavelmente – é que, nas redondezas, uma figura baixota, atarracada, mas com um chapéu enorme que parecia fazê-la mais alta e roupas negras que praticamente a tornavam invisível no negro da noite se encaminhava para sua casa e estava, aliás, já ali bem perto.

O chapéu em cone, de abas largas e de cor também negra; as roupas que vestia e sobretudo aquela cara, em que não faltava um nariz disforme, onde saltava à vista uma verruga – Sim! Tinha uma enorme verruga no nariz – a vassoura que trazia numa das mãos e arrastava pelo chão… não havia engano possível… quem se aproximava, a coberto da noite, era uma figura verdadeiramente sinistra.

Dentro de casa, calmamente, a velhinha lançava na panela uma pequena quantidade de algo que tirara de um dos frascos alinhados no aparador perto de si – uma medida sabiamente afinada pela experiência de muitos anos.

A sobrepor-se aos fracos sons que resultavam dos gestos tantas vezes repetidos e à sua voz ainda melodiosa, ouviram-se cinco fortes pancadas na porta.

O gato abriu os olhos, levantou-se, eriçou os pelos, arqueou a coluna e saltou na direcção donde viera aquele barulho que o incomodara no seu sono. A velhinha, sobressaltada, calou-se e parou de mexer a panela negra de onde saíam abundantes vapores e, penosamente, dirigiu-se à porta.

As mãos da simpática velhinha tremiam… e não era de frio.

Como já te contei, a temperatura até estava agradável…

O quê! Pensavas que era uma bruxa? Embora pudesse parecer, não! Não era uma bruxa! Era mesmo apenas uma velhinha que, com mão trémula, abriu a porta devagar…

Olhou a bruxa nos olhos – olhos que mal se viam na carantonha horrível…

Esta sim, era uma bruxa! Aquela cara feiosa, com a enorme verruga no nariz – também ele bastante avantajado e adunco – e um ar malévolo era, sem ponta de dúvida, a de alguém que queria assustar, que queria que ninguém tivesse dúvidas de que estava na presença de uma bruxa má.

A velhinha, com uma voz onde o susto parecia genuíno, perguntou:

– Porque é que tens uma cara tão feia?

– É para te pregar um susto! Um susto tão, tão grande…

E a bruxa esticava os braços, num gesto sugestivo, a ameaçar a velhinha de horrores enormes.

– Só escapas se me deres já… aquilo que já sabias que eu hoje… cá viria procurar!

E a bruxa entrou pela casa com o ar decidido de quem sabe bem o que quer. Já dentro da casa a sinistra figura pôs a mão à cara horrenda e, determinada, puxou pelo nariz.

Com a outra mão, pegou em algo que os dedos trémulos da velhinha seguravam… e levou à boca. Depois, com a beiça lambuzada do chupa-chupa, deu um beijo doce à avó.

A vassoura, a máscara e o chapéu do disfarce do dia das bruxas lá ficaram, atirados para um canto.

Entretanto a bruxinha notou:

– Cheira bem! Estavas a cozinhar?

– Estou a fazer sopa. Está quase pronta. Queres um pratinho?

– Claro! Isso pergunta-se? A sopa da avó é a melhor do mundo. O resto do chupa fica para depois…

E a menina deu a mão à avó e, seguidas pelo pachorrento gato preto, dirigiram-se à cozinha.

Uma história mal contada


Há histórias que fazem parte do nosso imaginário colectivo
e que moldaram a nossa percepção da realidade.
A fábula da Lebre e da Tartaruga é uma dessas histórias.

E se La Fontaine foi induzido em erro
ou foi cúmplice de uma tramóia bem montada?

Os autores do presente texto, usando de ironia e humor,
vêm apresentar o resultado de uma aturada investigação,
onde demonstram que houve fraude e que, afinal,
a fábula da Lebre e da Tartaruga foi…

Uma história mal contada.

Os autores:
André Lebre e Ana Tartaruga

 


Dedico esta história – a verdadeira –

A todas as crianças que gostam de ler

E aos adultos com sentido de humor refinado.

La Fontaine, desculpa lá a brincadeira:

Adulterei a tua fábula, que é bonita a valer

E não tens culpa, porque foste enganado…

Agradeço às minhas fontes de inspiração:

Às socialites e a quem vai atrás do foguetório,

E, claro, aos jornalistas, juízes e advogados,

Aos políticos pouco sérios (felizmente excepção)

E aos homens do desporto que têm no repertório

Muitos modos diferentes de falsear resultados…

O caso que vos vou descrever

Passou-se há muitos e muitos anos

No estranho mundo dos animais…

Caso que nunca poderia acontecer

No mundo tão certo dos humanos

Onde ninguém engana os demais.

Tudo começou numa entrevista:

A Tartaruga, mediática e famosa,

Contava, ao pormenor, a sua vida.

Além da foto, na capa da revista,

Havia uma frase curta e poderosa

«Desafio a Lebre para uma corrida».

A Tartaruga, que tinha fama de ser lenta,

Queria mudar esse aspecto negativo:

Nada melhor do que desafiar a Lebre

O animal mais rápido da floresta

Mas um bicho assustadiço e esquivo

Que raramente saía do seu casebre.

A Lebre viu ali uma boa oportunidade

Por isso, como se sabe, aceitou o desafio

E declarou ao Papagaio jornalista:

«Ninguém me vence em velocidade».

Aprazaram a corrida, que seria junto ao rio,

Um local aprazível para servir de pista.

No dia previsto e à hora combinada,

Manhã cedo, já a Lebre aquecia

Os músculos das pernas e das costas.

Para ver a celebridade, a bicharada

Juntara-se onde a Tartaruga chegaria

E cada um fazia as suas apostas.

Como a sua especialidade é dar nas vistas

A Tartaruga nunca da pompa prescinde:

Pegou em dois copos que ela mesma encheu

– Há que evitar situações imprevistas -,

Deu um copo à Lebre e propôs um brinde:

«E que ganhe a melhor, ou seja… eu».

Após uma curta sessão de autógrafos,

O canto do galo deu o sinal de partida

– Sabem que os tiros assustam os animais.

Acompanhadas por jornalistas e fotógrafos,

Largaram. Claro que a Lebre saiu rápida

E a outra lenta – os seus estilos habituais.

A bicharada ansiosa esperava as velocistas

– Àquele ritmo, a Lebre já devia ter chegado –

De olhos na meta, estranhavam a demora.

Deveras admirados estavam os jornalistas

E conjecturavam o que se teria passado,

Que a partida fora há mais de uma hora.

Para a história ficou a fotografia

– Uma cena estranha e caricata

Divulgada em revistas e jornais:

À sombra duma árvore, a Lebre dormia

E a Tartaruga passava rumo à meta

(E fotografias não mentem, são reais).

A multidão já aplaudia a bicha célebre.

Sob a algazarra, a outra despertou

E, ainda tonta, correu como uma seta.

Mas chegou demasiado tarde, a Lebre

– A bicharada toda em coro a assobiou –

Que a Tartaruga já tinha passado a meta.

A façanha, a lenda, a bela história

Da Tartaruga correu mundo e encantou.

E ela – com um sorriso de orelha a orelha

Pois ficara muito bem na fotografia –

Sim, só ela sabia que a Lebre falhou

Sob o efeito da poção da amiga Abelha.


Fraude perfeita? Não! Algo correu mal.

Um Ratito viu tudo e – finório – percebeu:

A Abelha a vender a poção para dormir;

A Tartaruga a deitá-la no copo da rival.

Esta bebeu e, durante a prova, adormeceu

E a outra, vagarosa, passou por ela a sorrir.

O Ratito, pensativo, até roía as unhas:

Para repor a justiça teria que acusar

Uma personagem com grande influência,

Sem quaisquer provas nem testemunhas.

Para divulgar o que vira, teria que usar

Toda a sua perspicácia e prudência.

Escrever uma carta anónima foi a solução…

Dirigida ao empenhado jornalista

A relatar o que vira, de forma precisa.

Este achou que, se não era só imaginação,

Havia ali assunto a não perder de vista

E começou a preparar a sua pesquisa.

O jornalista confrontou, com tais questões,

A Tartaruga que o olhava de soslaio.

A ilustre visada, ofendida, negou o facto.

Achando-se intocável, imune a suspeições,

Cometeu o erro de humilhar o Papagaio,

Chamando-lhe incompetente, fala-barato.

A notícia não tardou a vir a público

– a bicharada sedenta de emoções –

E descobriu-se uma vida escandalosa.

Desde que o credível Papagaio abriu o bico

Sucederam-se, em catadupa, as revelações.

Para começar houve uma ajuda preciosa:

Séria e tendo que manter a reputação

De especialista em doces e venenos,

A doutora Abelha, envolvida por abuso,

Revelou que a tartaruga pedira a poção

Porque andava a dormir bastante menos

E afirmara ser para seu próprio uso.

Tal como a Tartaruga corpulenta,

A mentira tem pernas curtas e baixo nível

E foi no tribunal que o caso foi disputado,

Mas, como a ré, a justiça é muito lenta

E tem uma carapaça quase intransponível

Se há alguém rico e poderoso implicado.

A Tartaruga sempre foi um animal

– não se esqueçam – muito influente

Dá-se com bestas capazes do pior

E, claro, o caso prescreveu no tribunal.

A Tartaruga continua, indiferente

Na sua carapaça, a achar-se a maior.

É esta a única e verdadeira história,

Contada com todo o rigor e boa-fé

Sem quaisquer enfeites nem fantasias.

Conseguir contá-la é já uma vitória…

Estranhamente, quão diferente é

A versão que chegou aos nossos dias.

O caso que hoje vos descrevi

Passou-se há muitos e muitos anos

No estranho mundo dos animais…

Caso semelhante nunca eu vi

No mundo tão certo dos humanos

Onde ninguém engana os demais.

A imprescindível Moral da História:

Cuidado! Que as aparências enganam.

Pensem por vós, sem ingenuidade,

E mesmo que pareça luta inglória,

– Mesmo quando muitos vos abandonam –

Escolham sempre o lado da verdade.

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