Todos os fins de tarde, Lúcia ia até a esplanada junto ao farol e ficava a ler até quase serem horas de o sol se esconder no horizonte. Depois levantava-se, caminhava até à Meia-laranja, vivia o pôr-do-sol e permanecia ali todo o tempo que durava o crepúsculo, vendo as cores quentes do horizonte a diluírem-se no azul gradualmente mais frio e mais escuro. Regressava a casa, com uma lágrima ao canto do olho, já a escuridão tomara conta do céu.
Era um hábito que mantinha religiosamente. Ao início ainda lhe parecia sentir na sua, a mão de Fernando, mas com o passar do tempo e o avolumar da solidão, o crepúsculo cada vez se tornava um momento mais penoso, por força das recordações contraditórias.
Felizmente a vida de Fernando não tivera um crepúsculo. Fora uma luz que se apagara bruscamente, traído pelo coração que sempre estivera disponível para a amar. Lúcia não sofrera ao vê-lo sofrer. Sofria agora a sua ausência.
Quantas vezes, desde que se conheceram, naquele local e àquela hora que dispensa o relógio, o pôr-do-sol e o crepúsculo que lhe sucedia tinham sido ocasião para celebrar a vida. Quantas revelações, quantas decisões felizes, tinham tido por cenário aquele mesmo local e aquela hora mágica. Foi também ali que Fernando a pediu em casamento e ela prontamente lhe disse que sim; ali decidiram que ficariam para sempre a viver na Barra; ali ele ficou a saber que ia ser pai; …
Os anos passaram. Viram os filhos crescer. Viram-nos partir, primeiro Tomé e depois Cristina, para construírem a vida longe dos pais.
Quantas vezes Lúcia e Fernando voltaram àquele lugar, na transição do dia para a noite, para se deixarem encantar pela beleza sempre renovada daqueles instantes. O marulhar das ondas e os gritos das gaivotas que se estendiam pelo areal constituíam a banda sonora desses momentos de felicidade.
Lúcia nasceu longe dali, num vale encaixado entre montanhas, que o sol iluminava apenas quando já ia alto no céu e o ocaso não tinha por companhia aquelas cores que a viriam a fascinar.
Foi nas primeiras férias na praia que se apaixonou pelo pôr-do-sol sobre o mar, pelo crepúsculo.
Havia sempre gente que passeava por ali, mas Lúcia reparou num jovem, apaixonado como ela por aquele fim da tarde e que, tal como ela, escolhera a Meia‑laranja para o admirar. Olhavam inicialmente na mesma direção, mas acabaram por olhar também um para o outro. As férias terminaram com eles de mãos dadas, enamorados um do outro e com uma paixão comum por aquele espetáculo de luz.
Lúcia levara, como sempre, um livro, mas estava incapaz de ler. O tom dramático da filha, deixara-a preocupada. Perdera o emprego e não estava a conseguir outro que lhe permitisse sobreviver, continuar a pagar a renda de casa, … Viria acolher-se na casa da mãe, se ela não se importasse.
Lúcia nem pensou duas vezes. Claro que a filha e o neto eram era bem‑vindos.
Enquanto caminhava rumo à Meia-laranja, Lúcia ia tensa. Na memória tinha algumas discussões antigas com a filha e temia que o convívio forçado, sobretudo numa fase difícil da vida de Cristina – o divórcio primeiro, o desemprego depois – gerasse novas fricções.
Sentou-se no muro da meia-laranja e olhou o céu. A obra de arte que tinha na sua frente, com cores inimitáveis, e em suave mutação, teve o dom de a acalmar. Pensou que, pelo menos, não estaria mais sozinha. Aprenderiam a viver juntas.
Cristina depressa encontrou um emprego. Era mal pago e tinha um horário que seria impossível de aceitar se não contasse com a ajuda da mãe para ir buscar o neto à escola e dar-lhe o jantar.
Lúcia ficou maravilhada com a inteligência e com a sensibilidade do rapazinho.
Ali estava ela, na esplanada do costume, à hora do costume. Diferente era o livro que levava e… a companhia. Leu-lhe uma história infantil.
Depois o passeio até à Meia Laranja. Lúcia e Fernando, de mão dada.
Ficaram em silêncio olhando o pôr-do-sol. Lúcia recordou-se das primeiras vezes que o apreciara. Nos olhos fixos e maravilhados do neto reviu os do seu amado.
– Ó avó, sabes que o teu nome significa luz? – disse ele com um brilho dourado nos olhos azuis e entusiasmo na voz.
– Sim, sei. E tu, sabes que tens o nome de um grande homem?
– Sim, o do avô Fernando.
Fernando olhava, deslumbrado, as cores do crepúsculo que se iam desvanecendo.
Lúcia reencontrara, na beleza daquele ocaso e na companhia do neto, a paz de espírito de que precisava para não mais sentir a solidão, a escuridão que se segue a cada crepúsculo.
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